Uma tendência POP mundial cada vez mais crescente, o gênero true crime migrou do submundo das playlists de podcast para as telas da Netflix, em uma sucessão inesgotável de minisséries e longas documentais que exploram alguns dos crimes mais atrozes registrados tanto nos Estados Unidos, bem como em diversos outros países. Alcançando antes apenas uma pequena parcela de assinantes da TV a cabo a partir do canal Investigação Discovery, hoje o formato se tornou um genuíno movimento alternativo de entretenimento, onde curiosos se fartam com relatos assombrosos que exploram a mente humana em seu pior estado. Mas enquanto produções como Dahmer: Um Canibal Americano podem ser gráficas demais, ao ponto de serem consideradas como uma glorificação do serial killer (o que não é o caso), O Enfermeiro da Noite relata a barbárie de Charlie Cullen pela ótica menos provável, mas tão mais importante: A da heroína que desvendou a real face de um lobo em pele de cordeiro.
A tradução do título “The Good Nurse” para O Enfermeiro da Noite não poderia ser a mais equivocada. Compreensiva, mas extremamente errônea, a versão aportuguesada direciona nossos olhos e atenção para os crimes de Cullen. Mas a verdade é que o original Netflix lançado primeiramente no Festival de Toronto e baseado no livro O Enfermeiro da Noite: Uma História Real de Medicina, Loucura e Assassinato (Charles Graeber), não se trata tanto dele. Subvertendo o gênero true crime da maneira correta – sem cair na mesmice dos clichês formulaicos replicados em produções anteriores -, o thriller baseado em fatos reais explora a história da enfermeira Amy Loughren, que conviveu lado a lado com o serial killer que silenciosamente matava seus pacientes com overdoses de insulina. Migrando de um hospital para outro sempre em circunstâncias suspeitas, ele conseguiu perpetuar seus crimes por mais 16 anos.
E a partir da perspectiva desta boa enfermeira, vemos a dualidade de Charles, um homem aparentemente correto e generoso, que a ajudou em seus piores momentos, mas que quase diariamente matava um de seus pacientes durante o turno noturno. E pela direção de Tobias Lindholm e roteiro de Krysty Wilson-Cairns, a trajetória do serial killer mais letal dos Estados Unidos se torna uma inspiradora e encorajadora história sobre uma mulher comum que, em meio a todos os seus conflitos e dilemas de mãe solo trabalhadora, foi capaz de encerrar um ciclo de violência que nem a gestão de alguns dos maiores hospitais do país conseguiram. Convidando a audiência para uma experiência angustiante que se priva da banalização da violência, o cineasta brinca com a nossa imaginação e mostra os crimes do assassino sempre pela ótica da especulação.
Abusando da impressionante e poderosa performance de Eddie Redmayne como Cullen, O Enfermeiro da Noite é um suspense que nada perde para os outros longas do gênero que abusam do grafismo. Com o vencedor do Oscar em uma performance internalizada e introspectiva, somos presenteados por sua poderosa versatilidade. O astro esbanja talento, habilidade e sagacidade de forma natural e assustadora, à medida em que fica em um leve hibridismo performático entre uma versão mais doce e acalentadora – aquela que ajuda a enfermeira Amy – e seu suspeito comportamento que escapa em alguns momentos. Em contraste, a também vencedora do Oscar, Jessica Chastain, nos oferece uma excelente atuação mais serena e cansada, que estampa o estado emocional que a enfermeira vivia no auge de sua amizade com o serial killer.
Com figurantes que são enfermeiros na vida real, a produção retrata a comunidade médica pela ótica correta, replicando a didática operacional dos profissionais do ramo, como uma forma de também honrá-los pelos seus serviços prestados à sociedade. E ao invés de cair nos clichês do gênero true crime, em que o serial killer deixa pequenos rastros de seu comportamento mesmo quando sua verdadeira identidade ainda é um mistério, Tobias se mantém no campo realista de mostrar Charlie sempre pela ótica de Amy – que o enxergava apenas pela bondade de seu cuidado com ela.
Essa estratégia do cineasta torna a experiência ainda mais palpável para a audiência, uma vez que ela nos coloca na mesma posição de Amy, como aqueles que enxergarão a verdadeira face do mal apenas em seu excelente clímax. Com uma visão mais otimista que valoriza a protagonista como a heroína sem capa da vida real, O Enfermeiro da Noite é outra daquelas preciosidades lançadas pela Netflix. Angustiante por sua estratégica atmosfera de mistério e com uma direção cautelosa que se aproveita das sombras da noite, em contraste com a luz artificial, o thriller é uma impecável cinebiografia feita para os viciados ou não no gênero true crime.
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